sábado, 29 de abril de 2017

ITABAIANA DOS MEUS TEMPOS DE MENINO E DE RAPAZ


         
                                                   Melchíades Montenegro em 1923

O destaque excepcional que Itabaiana conquistou, de subito, com a visita da muito nobre e culta senhora duquesa de la Rochefoucauld, fato maravilhoso só possível por artes de berlinques e berloques desse Assis Chateaubriand, Mefistófeles autêntico que não deixa uma alma sossegada desde o velho Egito e toda a Europa Ocidental até os quatros extremos do Novo Continente, fez com que eu me decidisse a realizar um desejo amadurecido - escrever uma série de crônicas ligeiras sobre a inesquecível Itabaiana das minhas recordações de menino e das minhas saudades de adolescente. Nascido no município dos Palmares, fui para lá com dois anos de idade. Ali chorei de medo e revolta contra a primeira carta do ABC; fiz a minha primeira comunhão; vesti a primeira calça comprida e tive a minha primeira namorada, aliás, a menina mais bonita da cidade. Ali descansei as cinzas, para mim, sagradas dos meus queridos pais, de minha avó paterna e do meu tio e padrinho Francisco Montenegro. Formado em Direito voltei a Itabaiana e entrei "no rol dos homens sérios". Decerto estava escrito que era ali que eu teria de encontrar a outra, a melhor metade da minha vida, a dedicada e heroína companheira de minhas vicissitudes. Tenho voltado lá, de visita aos parentes afins. São romarias penosas que magoam o coração, porque fazem que eu sinta cada vez mais distante, mais irreal, assim como um sonho feliz, aquela Itabaiana que o Dr. Flávio Ribeiro Coutinho dizia ser a segunda cidade do Brasil, depois do Rio de Janeiro. De fato, Itabaiana naquele tempo era o melhor lugar do mundo, um paraíso com muitas Evas e Adãos. Vivia-se suave, alegre e inocentemente, como se Deus já houvesse julgado a gente e decidido que merecíamos o gozo, as delícias de uma bem aventurança perene. Mas nem sempre fora assim. O milagre era devido a dois homens: o cônego Tranquilino, no domínio espiritual e o Des. Heráclito Cavalcanti, na esfera política. Itabaiana sentiu e viveu a Democracia. O governo municipal era uma penitencia, uma devoção propiciatória, um sacrifício cívico. O prefeito não era o homem que podia fazer o bem e o mal, proteger ou perseguir. Seu dever era ser bom. E ninguém se afastava desta linha. Nada recebia do erário, antes pagava do seu próprio bolso as despesas com o aformoseamento ininterrupto da cidade. O orçamento era de vinte contos anuais, mas em todo 24 de maio devia ser inaugurado um novo serviço público importante. As ruas pareciam salas de visita, pelo seu asseio; o serviço de limpeza e higiene tornou Itabaiana a cidade sanatório ou a Petrópolis agreste e tépida dos que buscavam cura ou repouso restaurador. Havia os que iam simplesmente por prazer, para desfrutar o éden itabaianense. O general Aguiar, arrastando os filhos já casados Paulo e Orlando. O general Leitão, com a casa cheia de moças e rapazes. O cel. José Borba, Lulú de Maré, Daniel de Sirigi, Cezinha de Bujari, o cel. João de Moura, pai do saudoso Dr. Moura. Zé Cesar de Santa Tereza, o Barão de Suassuna, Valfredo Pessoa, o cel. José Garcia, Dr. Miguel Araújo, os drs. Loureiro, pai e filho, toda essa nobre gente então higida e forte, procurava Itabaiana, pagava uma fortuna por três meses de uma casa ou ficava no hotel de D. Sinhá ou no de D. Chiquinha, sentindo-se tão bem como se estivesse na melhor hospedaria. Não eram apenas o clima e o passadio a atração de Itabaiana. Era também a sua sociedade. A distinção da família Itabaianense, a hospitalidade de seus lares, a euforia de sua gente, a elegância de maneiras, o bom gosto no trajar, a simplicidade e compostura dos seus maiores, o policiamento e a brandura de suas autoridades. Até os quinze anos eu pensava que ninguém queria ser prefeito de uma cidade, que não havia nenhuma vantagem nisso. Naquela época houve muitos em Itabaiana, porque quem não fosse rico de verdade não aguentava mais que um ano, sob pena de ficar de tanga e chapéu de jornal. O cargo era de nomeação. A cadeia pública passava temporadas fechada, como no tempo de Jano. A não serem "Formigão" que quando tomava um pileque danado, bancava o demagogo comunista de hoje fazendo comícios contra o vigário, as autoridades e o cel. Néneu, representante do capitalismo porque dava dinheiro a juros ou "Lamparina" que quando a bebedeira saia da regra, dava para morder que nem cachorro doido, ninguém incomodava o destacamento de três soldados velhos e um sargento quase inválido. Tivemos um delegado, Massa, irmão do horando senador de mesmo nome, que soltava imediatamente, relaxava a prisão, quando o acusado jurava "por Deus nosso Senhor" como não tinha feito nada. De uma feita correu um cachorro doente que só pôde ser morto a pedradas, porque ninguém possuía uma arma de fogo. Ninguém receava do outro. Ninguém tinha inimigos. Era assim a Itabaiana dos meus tempos de menino e de rapaz.

                       Melchíades Montenegro, Recife, 26 de Agosto de 1948.      


Fonte: Áurea Montenegro - Engenho Jurema      

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