Alameda na antiga Praça da Indústria onde existiu a Capela de Santo Antonio, construída, em 1923, por Firmino Rodrigues de Souza.
Itabaiana, Terra Materna
Morada das almas
No dia 14 de fevereiro desse ano,
recebi uma mensagem do meu primo Robinson Viana, comunicando o falecimento de
uma pessoa muito querida, Ivanise de Souza Souto, minha prima, nascida e criada
em Itabaiana. Não foi nenhuma tragédia, sua enfermidade vinha de longa data.
Pela grande amizade que sempre nos uniu, imediatamente telefonei para um
taxista amigo e segui para aquela cidade, onde estava sendo realizado o velório
e iria ocorrer o sepultamento.
Surpreendi-me com o burburinho dos
transeuntes e o número de veículos no centro, que conhecera tão modorrento.
Fazia muitos anos que visitara Itabaiana; a mudança era evidente. Um pouco
depois das dezessete horas seguimos de carro, vagarosamente para o cemitério, e
ao passarmos pelo belo coreto o movimento do trânsito diminuiu e me dei conta do
início de um por do sol, que no Recife não ocorre nem parecido, ou se tem
ninguém consegue ver.
Com aquela luz dourada e enviesada de
fim de tarde cortando a poeira suspensa no ar, entrei no cemitério e
curiosamente li algumas das placas indicativas nos túmulos. Passaram a desfilar
diante de mim, os antigos personagens da minha origem materna.
A curiosidade cedeu lugar ao êxtase.
Não mais lia as placas ao acaso, agora procurava o local de descanso dos parentes
de quem me recordava. De mãos entrelaçadas com a saudade passeei com meus
ancestrais sob um céu vermelho e o ziziar de cigarras. Foi um presente de
despedida de minha querida prima Ivanise: o encontro com minhas raízes maternas.
Dias depois desse fato, meu amigo e
confrade Ricardo Bezerra, me convidou para proferir uma palestra na comemoração
do 10º aniversário da ALANE – Paraíba. Respondi que sim e o tema seria Itabaiana, Terra Materna, ainda que não tivesse escrito nem uma linha dele.
Procurei então me informar melhor sobre
o que iria falar. Encontrei no excelente livro de Sabiniano Maia, “ITABAIANA – Sua História – Suas Memórias”,
na página 50, uma revelação que me arrepiou os cabelos: “Dentre as muitas
interpretações dadas ao vocabulário Itabaiana,
há a do Dr. Teodoro Sampaio... diz ser aquele vocábulo tupi corrompido,
composto de tapa-yan ou tabaanga, a morada das almas... Por
volta de 1890, no local onde... se realizava a feira de gado, no Alto dos
Currais, encontraram-se ossadas humanas postas em jarras.” Local de um antiquíssimo
cemitério indígena, muito anterior ao povoamento colonial.
O livro de Sabiniano Maia, ainda traria
uma surpresa maior. Na página 320, tirada do livro de Joaquim Inojosa, “Diário de um Estudante”, uma fotografia
com a legenda – “Moças de Itabaiana, aguardam sentadas num dos bancos do coreto da
Praça Álvaro Machado, a chegada da música para a retreta do domingo.” Nela,
estava minha mãe, Edelvina Rodrigues de Araújo. São cinco jovens retratadas, três
consegui identificar, da esquerda para a direita: Noêmia Araújo (filha de Tia
Mocinha, neta de Vovó), uma não identificada, Luiza Braga, Mamãe e outra não
identificada. O passado chegava sorrateiro às minhas mãos.
Toda história que nossa mãe nos conta
parece especial. Então, quando ela recorda fatos da infância, adolescência,
mocidade, namoros, lugares, passeios, personalidades, família, acontecimentos
marcantes ou banais, tendo como cenário uma pequena cidade, esta será para
sempre uma referência emotiva que nos transportará para os braços maternos.
Itabaiana, cidade de minha mãe.
Açude salgado, triângulo (da estrada de
ferro), bonde de burros, Guarita (lugar de mulher malcriada e das pernas finas,
opinião materna), Salgado de São Félix, Praça da Indústria, Festa de Nossa
Senhora da Conceição, Café do Vento, Mãe Doninha, Nen, Pilar, Tio Pedro,
Mariinha, Alfenins, Papiu, Madrinha Sinhá, Capela de Santo Antônio, Madrinha
Marica, Sivuca, Baninho, Luiz Rodrigues, Pedrinho, Valéria, Curtume, Puxa-puxa,
Água Rabelo, Rio Paraíba, Maracaípe, Ivanise, Ida, Isa, Tia Tutu, Tia Isaltina,
carne de sol, banho de cuia; Tudo isto num amálgama com o nome de : Itabaiana.
Esta cidade de médio porte, situada na região
Semiárida do Estado da Paraíba, viveu até bem pouco em decadência, mas em fins
do século XIX e início do século XX, teve um grande desenvolvimento comercial,
industrial e cultural que aos pouco retorna nos dias de hoje.
Quase equidistante do Recife,
Campina Grande e da Capital do Estado e, sendo ligada a estas por via férrea e
rodoviária, já no final do século passado, tornou-se entreposto comercial de
grande porte. Além de que
desenvolveu várias indústrias de beneficiamento do couro voltadas para o
mercado nacional e internacional.
Com o desenvolvimento vieram as consequências
sociais e culturais; jornais próprios, transporte coletivo urbano (bonde de
burros), vários grêmios literários, retretas na praça da Conceição (que ainda
guarda o mais belo coreto da Paraíba, quiçá do Brasil. Importado da Bélgica?),
escolas públicas e particulares e uma sociedade que promovia festas e reuniões
periódicas pelos mais variados motivos. No final do ano, a festa da Conceição
atraía visitantes de todas as cidades vizinhas, da capital, de Campina Grande e
do Recife.
No dia 2 de setembro de 1945, enquanto
do outro lado do mundo, o último reduto do Eixo, o Império do Japão, rendia-se
incondicionalmente aos Aliados comandados pelas Forças Armadas Norte Americanas,
no convés do Encouraçado Missouri ancorado na baia de Tóquio, eu completei meus
três anos com uma festa em Itabaiana. Não completou um ano o tempo em que lá
residi. Brinquei de roda na praça, ouvi histórias de trancoso e conheci meus
parentes maternos que me acompanharam por toda vida.
Minha avó, Alexandrina Belarmina da
Conceição Rodrigues de Araújo, mas para nós, simplesmente Mãe Doninha, morava
longe do centro da cidade, perto do triângulo da estrada de ferro. Na frente da
casa, ela mantinha uma mercearia a que nós, netos, chamávamos a "Venda de
Mãe Doninha", além disto, fazia um doce chamado "alfenim" feito
de mel grosso e quente batido por duas pessoas cujas mãos têm de ficar
polvilhadas sempre de araruta ou Maizena para o mel não grudar. É minha mais
gostosa lembrança da infância: comer alfenim.
Foi em Itabaiana que minhas memórias deixaram de ser fragmentadas,
passando a ter um sentido de continuidade. Lembro-me bem das brincadeiras na
praça em frente de nossa casa tão ao gosto dos anos quarenta do século XX,
brincar de roda com as cantigas próprias que hoje só encontramos nos livros ou
nas manifestações de grupos folclóricos
(fui no Tororó, no meu jardim tinha uma roseira, o cravo brigou com a
rosa, ciranda cirandinha e muitas outras
mais).
De todas as brincadeiras e cantigas infantis, Itabaiana
tinha ou ainda tem uma que é peculiar e que não vi ou ouvi em nenhum outro
lugar. Fazia-se uma roda de mãos dadas com meninos e meninas e sempre girando
no mesmo sentido, cantava-se a seguinte canção:
"No salão dancei
mata pila, pila pila,
no salão dancei
mata pila pila pila,
Mademoiselle (dizia-se o nome de uma das meninas presentes)
Nesse momento a menina nomeada largava a roda, caminhava
para o meio e dançava cumprimentando a todos que cantavam a melodia com o seu
nome e depois retornava para a roda.
Monsieur (dizia-se o nome de um dos meninos presentes)
Mata pila, pila pila,
No salão dancei
Mata pila, pila, pila,
E assim continuava até que todos fossem chamados. Ignoro a
origem dessa brincadeira, mas, pela utilização de vocábulos franceses, talvez
esteja aí a chave para quem for
pesquisar.
Itabaiana tem um clima seco, está situada na Zona do Agreste
Paraibano, à margem direita do Rio Paraíba do Norte.
Mamãe nos contava muitas histórias tendo o rio como tema,
uma das que eu mais gostava era a de que quando menina tomava muitos banhos
nele e brincava de catar pedrinhas redondas para "jogar com pedra"
encontrando então uma bem pretinha com uma pepita de ouro encravada. Daí nossa
imaginação corria solta na vontade de ir até Itabaiana procurar mais pedrinhas
daquelas, pois onde ela encontrou uma, deveriam existir outras. Mamãe ajudava
na fantasia descrevendo em detalhes a forma da pedra e o brilho do ouro.
Existe um episódio envolvendo um "jacaré-açu" que
foi colocado no açude Salgado no final do século XIX, dentro das terras do
Curtume Santo Antônio, pertencente a Papiu, Firmino Rodrigues de Souza, também
conhecido como Firmino de Cotinha e meu materno avô, José Paulo de Araújo.
O caso é que alguém vindo da Amazônia trouxe de presente
para Papiu e Vovô dois filhotes de jacaré-açu, e eles os colocaram no dito
açude. Depois esqueceram por completo da sua existência. Um deles morreu, mas o
outro cresceu e muito, superando largamente o tamanho dos jacarés que existiam
por aquelas bandas.
Começou assim a correr o falatório do povo e, como quem
conta um conto aumenta um ponto, a fama e a envergadura do jacaré do açude
salgado foi largamente ampliada.
Papiu era um homem de
muitas posses e, consequentemente, muito bem relacionado. Recebia fidalgamente
o melhor da sociedade de Pernambuco e da Paraíba. Assim, como por contingência
dos negócios de exportação de couro, muitos estrangeiros, principalmente
ingleses, alemães e americanos. O certo é que num dia de visitantes ilustres,
todos
vestidos como mandava a moda do início do século XX, de
casaca e cartola, resolveram antes do almoço, darem um passeio de bote no açude
salgado que, por ser inverno, estava parecendo um lago, e no meio de risadas e
galhofas remaram até o meio do açude.
O anfitrião, por pura
gabola e sem medir as consequências, contou as histórias e a fama do jacaré,
habitante daquelas águas, possivelmente aumentando-as um pouco. O pânico tomou conta dos navegantes. Olhavam
desconfiados para a água e qualquer coisa que vissem boiando, imaginavam logo
ser o réptil. Alguém, vendo um resto de uma cabaça velha se mexendo ao sabor do
vento, pensou que fosse o animal e gritou.
-Lá vem o jacaré!
Foi o bastante para que todos se levantassem de uma só vez,
fazendo o que era de se esperar; o barco virou e os ocupantes de fraque e cartola
caíram na água e começaram a nadar freneticamente. Todos chegaram à margem
gritando, encharcados, enlameados, as cartolas perdidas boiando ao léu e do
jacaré nem o cheiro.
Ele ainda viveu muitos anos só assustando, mas sem molestar
ninguém. Quando rareavam as aves aquáticas do açude, caçava as galinhas, perus
e guinés que aparecessem para ciscar no seu território. Mamãe acreditava que
saiu do açude em 1924 quando de uma grande cheia do Rio Paraíba, que inundou
meio mundo em volta da cidade.
Epílogo
Minha família materna chegou oficialmente a Itabaiana pelo
que “Reza a sesmaria nº 793, de 23 de fevereiro de 1781:
Capitão Joaquim Dias de Andrade, Tenente Manoel da Cunha de
Oliveira e José Rodrigues de Araújo,
dizem que descobriram terras devolutas nas margens do Rio Parayba, principiando
nas extremas das datas dos Andrades, do nascente ao poente, até o logar do Areal, e pedem por sesmaria...”
Um século depois, a neta do sesmeiro José Rodrigues de
Araújo, um dos povoadores de Itabaiana, Teodora Rodrigues de Souza (por nós
chamada de Mãe Cotinha), nascida em 1831, minha bisavó, utilizando o método
primitivo de utilização do tanino da casca do angico para curtir o couro, fundou
o Curtume Santo Antônio em Itabaiana. Graças ao espírito empreendedor do seu filho
Firmino Rodrigues de Souza, esta indústria prosperou, colocando a cidade no rol
dos polos exportadores de bens manufaturados do Brasil.
Com
a derrocada da Bolsa na crise mundial de 1929, as exportações paralisaram e
nunca mais se recuperaram. O comércio sofreu as consequências e passou a
sobreviver do varejo só tendo certa animação nas terças-feiras, dia da feira.
Mais uma vez cito Joaquim Inojosa, e o
seu livro “Diário de um Estudante”,
quando descreve um piquenique realizado em 1921, organizado por meu pai e seu
irmão, no Engenho Jurema, no município de Itambé: Papai iniciou a corte a minha
mãe nesta festa.
“
Realizou-se, hoje, um grande piquenique a duas léguas da cidade. Saímos, cerca de
90 cavaleiros e mais cinco carros puchados a bois, três carroças e um automóvel,
às 8 horas, chegando ao ponto às 10 ½ da manhã. Esperavam-nos os donos da casa...
com lauta mesa. Ao lado, grande latada sob frondosa árvore, onde dançamos a
vontade...Voltamos todos juntos, chegando à noite. A música orquestrava à frente
e o povo dava viva ao... próprio povo.”
O senhor Odilon Maroja, prefeito da
cidade, na segunda década do século XX, para efeito de ampliar a Praça Álvaro
Machado, determinou a demolição da primitiva Capela de Santo Antônio em 1918,
construída nos alvores do povoamento de Itabaiana. Meu tio avô Papiu, devoto de
Santo Antônio, procurou reparar o erro do edil, seu amigo, construindo em 1923,
as suas custas, uma nova Capela de Santo Antônio, na Praça da Industria. O
casamento de meus pais Melchiades de Albuquerque Montenegro e minha mãe
Edelvina Rodrigues de Araújo se realizou nessa capela, em 30 de outubro de
1924.
Através da herança materna, corre no
meu sangue o gene do sesmeiro José Rodrigues de Araújo um dos povoadores
primitivos de Itabaiana e no fim da tarde de 14 de fevereiro de 2014 ele e
todos os demais parentes caminharam junto a mim nas alamedas do cemitério, no
sepultamento de minha prima itabaianense Ivanise, fazendo reviver o verdadeiro
nome da cidade de minha mãe, tapa-yan,
morada das almas.
Itabaiana, Terra Materna, onde caminhei sob a luz dourada de um
sol poente de mãos dadas com minha ancestralidade.
Bibliografia:
Itabaiana-Sua História-Suas Memórias. Sabiniano Maia – João Pessoa/PB 1976
Diário de um Estudante – Joaquim
Inojosa – Rio de Janeiro/RJ 1959
Memórias Seletivas-Infância –
Melchiades Montenegro – Recife/PE 2002
Melchiades Montenegro Filho .
Sobrinho neto de Firmino Rodrigues de Souza (Firmino Cotinha), o autor é historiador, escritor, poeta, artista plástico, membro da Academia de Artes e Letras de Pernambuco-AALPE, da Academia de Letras e Artes do Nordeste Brasileiro-ALANE, da União Brasileira de Escritores-UBE, da Academia de Letras, Artes e Ciências de Olinda-AALCO.
Tão bela, poética e histórica descrição fez-nos viajar até aquelas paragens paraibanas, com direito a boas risadas por conta do jacaré-açu que viveu no açude Salgado! Parabéns efusivos ao grande poeta escritor (ou vice-versa) pelo maravilhoso texto!
ResponderExcluirFraternal e saudoso abraço com votos de vida longa e saudável para nosso gáudio!
Caro Melchiades. Sensacional. Fiquei maravilhado com a forma elegante de você discorrer sobre Itabaiana, cidade, com meu modesto trabalho de técnico da Chexf, levei energia de Paulo Afonso. Meu pai nasceu em Campina Grande, e tinha por sobrenome Marques da Silva e, pelo que sei, os dessa linhagem te3m raízes com os Tavares e Araújo. Marileide era Tavares e eu Marques da Silva e assim, éramos primos. Na próxima reunião do Centro de História Municipal, a qual deverá ocorrer logo após o Carnaval, farei a leitura do seu texto pela importância e beleza do seu escrito. Parabéns.
ResponderExcluirAmigo MELCHÍADES
ResponderExcluirNão consegui parar de ler! Que belas recordações das suas origens, do seu
chão materno, das suas lembranças infantis e juvenis.
O seu texto deve ser divulgado como exemplo e estímulo aos escritores.
Parabéns !!!
MYRIAM
chão
Caro Melchiades. Encantado com as memórias de sua infância vivida na sua quase
ResponderExcluircidade natal, onde você residiu até os três anos juntinho de sua mui querida
mãinha Dona Edelvina, carinhosa e exemplar,porque nascida também de genitores
exemplares. Na década de 50,visitei Itabaiana, quase mensalmente,de passagem para Campina Grande, Patos, Souza e Cajazeiras. No regresso João Pessoa e Goiana para almoço no Buraco da Gia.Itabaiana sempre foi uma agradavel,bela e organizada cidade.Pena não ter tido o privilégio de ver o seu por do sol tão decantado pelo olhar criança tão precocemente despertado. forte abraço,
Wilmar Medeiros
Dileto amigo Melchiades, maravilha de texto! Esclarecedor pelos detalhes históricos, sedutora pela luz do envolvimento de tuas origens maternas na história que contas, sem deixar de contar parte principal da história de Itabaiana. Unem-se assim teu talento de historiador com a competência do escritor para criar esta pequena mas encantadora joia.
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